Tuesday, December 28, 2004

Ginásios

Todas as áreas entre aspas deste argumento (argumento foi uma palavra linda!) devem ser lidas em português com sotaque do Brasil.

“Segura! (não é segura!, é ségura!)... Yep! Yep! Vamos subir!”. Eu continuava a pedalar parado, paradinho. “Mais força, vamos subir!”, por mais que me esforçasse não conseguia fazer aquele exercício mental de estar a pedalar parado e me imaginar a subir. O professor, na minha frente, continuava com as afrontas à minha inteligência: “Eu vou atrás de vocês, vamos lá pessoal!”. À minha frente, para além do professor que nos queria fazer crer vir atrás de nós, apresentavam-se uma série de traseiros escanzelados a tentarem imaginar a subida ou, simplesmente, a pedalar para a tonificação – Hoje as pessoas não valem pela cabeça que têm mas pelos traseiros e bustos que conseguem cultivar. “Vamos subir pessoal! Yep! Yep!”. Comecei a transpirar, respirar tornou-se cada vez mais difícil. Fiquei ofegante mais pela dificuldade do exercício mental que me obrigavam a fazer do que devido ao simples acto de pedalar. “Vá, segura! Vamos descer pessoal (não é descer é décê)!”. Que raio de ambiente era aquele que em lugar de ouvirmos e sentirmos a aragem na face éramos acometidos por uma música fácil nos ouvidos (Bum! Bum! Bum!), entrecortada pelo “Yep! Yep! Segura!” do evangelizador do cycling. “Ségura!”.
Passei uma hora a dar-lhe no pedal, enquanto, quase como teste a uma ubiquidade possível, tentava imaginar os pássaros, o verde dos campos, as escarpas nas montanhas, os rios e os ribeiros, o movimento perpétuo das suas águas, o horizonte, o horizonte, o horizonte, o horizonte sempre a fugir-me ou a conservar a distância entre ele e a minha pessoa, a distância entre mim e o horizonte, a distância entre mim e o horizonte a lembrar-me que o meu mundo é simples, redondo e belo, a distância entre mim e o horizonte a recordar-me que o infinito existe em cada circunferência, em cada contorno, em cada essência, em cada ser, a inquietude dos precipícios, a coragem das subidas, o risco, o risco, o risco, o risco como a certeza única de todos os grandes amores e projectos, a realidade dos objectivos, a fragilidade dos meios, a gincana pela gincana, o travar a fundo e o sentir do corpo contorcer-se, o lembrar-me vivo, as pedras do caminho, as calçadas, toda a espécie de matéria inerte, os mosquitos que nos entram nos olhos, uma velhota sem dentes a sorrir, um gato preto no caminho, o azar, a sorte, o dominar da bicicleta com uma só mão, sem mãos, o grave combate à força da gravidade, a chuva, a lama, o sol, o pó, a água transpirada e a bebida mais que merecida, os cheiros, os aromas silvestres, o senhor de bigode que contempla o fruto do seu trabalho, mais um gato, meio branco meio preto, azar axadrezado, as vacas com a mesma assimetria de cor do gato que pastam ou procuram alguma coisa perdida entre a erva, o som de um sino a anunciar coisa alguma, “Yep! Yep!”, uma árvore com uma forma esquisita, “Ségura!”, não é uma árvore é talvez um homem, não é um homem é uma árvore em forma de homem, “Yep! Yep! Chegamos pessoal!”.
Saí da bicicleta e executei um conjunto de exercícios sugeridos pelo professor para relaxar os músculos, enquanto formava mais uma certeza em meu pensamento. Saí da sala com a ideia de que os ginásio estão para a educação física como os hamburgers estão para a gastronomia portuguesa.

1 Bocas:

Anonymous Anonymous Disse...

exactly...e provavelmente, em ambos os casos, o objectivo principal é fazer esquecer o conteúdo por via da manipulação da aparência...

11:03 PM  

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